sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Ensaios sobre encontros e construções na fé judaica: Deus é bom e o Satan é mau

(artigo publicado na Revista Unitas. 
Disponível em: http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/unitas/article/view/3/5)

“Antes de o indivíduo se propor a lutar contra a maldade no mundo exterior,                                           ele precisa primeiro estabelecer a ordem em seu mundo interior.”[2]

INTRODUÇÃO
O século XIX foi responsável pela virada hermenêutica em textos sagrados. Após o declínio do domínio religioso no meio das ciências e o grande interesse pelo universal, abriu-se espaço para o surgimento da comparação entre as religiões.
O presente artigo versará a comparação entre o zoroastrismo e a fé judaica amparada a partir do século VI a.e.C., época do início do domínio Persa sobre Israel. Observaremos a mudança teológica do Deus causador de todo o bem e de todo o mal, para um Deus que faz o bem, contrastando com Satan, responsabilizado pelo mal.
Ainda à guisa de introdução, precisamos sublinhar dois problemas para uma consulta futura e mais exaustiva: a) Israel, nos quesitos religião, política e economia, não pode ser tratado como um todo unificado. Fohrer destacará, inclusive, que os israelitas nem constituíam um grupo étnico homogêneo.[3] Em diversos momentos, é notada a presença de grupos internos contrários no que se refere à ideia da fé. Portanto, nosso interesse em informar sobre a influência persa na religião judaica, não poderá pretender a generalização; b) A cronologia dos acontecimentos. Ackroyd destacará a dificuldade em apresentar uma cronologia dos acontecimentos na época em que o governo persa assumiu o lugar da Babilônia.[4] Herbert Donner acredita, por exemplo, que a saída da Babilônia não se deu da noite para o dia (neste caso, em 538 a.e.C.); fora apenas na década de 20 (séc. VI), sob o governo de Cambises ou Dario I.[5]
1        ISRAEL E SUAS MÚLTIPLAS RELAÇÕES
A fé de Israel é uma fé construída através de encontros. Sua teologia fora alterada/acrescida a cada manifestação de força contrária em seu caminho. Isso nos leva a entender que a Bíblia baseia-se numa experiência quase universal. Considerando que o Êxodo tenha existido, começa-se pelo contato com a fé egípcia, onde o dualismo já fazia parte do mito cultual: Osíris era como um deus bom, enquanto Seth-Typhon, um deus mal;[6] é possível citar os sumérios com sua influência na construção literária da Torah[7], bem como Gilgamesh em oposição ao monstro Huwawa;[8] com os cananeus, Baal (o deus da fertilidade) e Mot (deus do submundo e da morte);[9] no exílio babilônico, Israel teve contato com a adoração de Marduk[10], o que vencera Tiamat.[11] Mesmo que Israel tivesse ciência dos combates cósmicos existentes e todo o dualismo nas religiões circundantes, o Primeiro Testamento não apresenta nenhuma luta cósmica entre Javé e Satan. O inimigo é o outro. Israel não luta contra deuses, mas contra governos.
O inimigo não é só o outro, mas também outro: o próprio Javé (Lm 2.5).[12] O livro de Lamentações (2.21) registrará: “Tu os mataste, no dia de tua ira, sem piedade os imolaste”. O autor de Lamentações “emprega seis termos diferentes (͑ap, ḥărôn, ḥări, ḥēmâ, za ͑am, ͑ebrâ) cerca de dezoito vezes para expressar o caráter irado do julgamento de Deus”.[13] Javé é responsabilizado não pela causa e sim pelo mal enviado, pois o mesmo livro em questão denuncia o pecado humano em 3.39,42[14].
Javé é o pastor perverso (3.2). Ele é único e não há nada além dele. Luz e treva são obras de suas mãos. Vê-se que o aspecto destrutivo da personalidade de Deus será reconhecido ulteriormente como Satan.
2        MONOTEÍSMO (?)
A fé judaica não deixa dúvidas quanto a unicidade de Javé. O critério da OHD (por volta de 550 a.e.C.), por exemplo, está baseado em Dt. 6.4: “Ouve, Israel, Javé nosso Deus é o único Deus”. Suas três exigências são: Um só Deus, um só povo e um só lugar de culto.[15] A primeira exigência define: nada de ídolos. Deus é um só e responsabilizado tanto pelo bem como pelo mal. Não há lugar para um dualismo religioso. Todas as coisas provêm de um só Deus.
Jeffrey Burton Russel enfatiza que “na religião hebraica pré-exílio, o Senhor fez tudo que estava no céu e na terra, tanto o bem como o mal. O diabo não existe”.[16]
3        DUALISMO (?)
O Dêutero-Isaías (45.7)[17] combaterá essa ideia, ainda na ambiência babilônica, ao afirmar: “Formo luz e crio escuridão, o que faz paz e o que cria mal, eu, YHWH, o que faz tudo isso”. Não poderia haver concorrência de poderes. Não obstante, Geza Vermes nos dirá que “a ideia de que os demônios eram responsáveis por todo o mal moral e físico penetrou profundamente no pensamento religioso judaico no período após o exílio babilônico, sem dúvida, como resultado da influência iraniana sobre o judaísmo”.[18] Na Pérsia, Ahura Mazda é deus da luz[19] e Angra Mainyu é deus das trevas[20]. E como isso fora possível, visto que Israel rejeitava tal teologia dualista?
Em primeiro lugar, a visão dualista do cosmos[21] não surgira com os persas e também foi um trabalho de elaboração teológica no zoroastrismo:
A concepção original Gathas da realidade do mal é mais enfatizada pelos teólogos do período avéstico tardio, e a personalidade do príncipe do mal se torna ao mesmo tempo mais pronunciada. O cerne mais difícil que confronta os sacerdotes zoroastristas, como faz todo teólogo, é como Ahura Mazda, o pai de bondade, pode ser feito responsável pela existência do mal no mundo. O profeta já ensinou a existência de um poder independente como o autor do mal. A ideia inerente a este ensino é agora, elaboradamente, trabalhado até que cada objeto que é marcado pelo homem como o mal seja atribuído à atuação do Espírito Maligno. A proibição é colocada sobre tudo no universo que se opõe ao reino de Asha da justiça, até o detalhe de criaturas nocivas e plantas venenosas. Eles pertencem à criação do mal.[22] (Grifo nosso)
Dhalla ainda informa:
O epíteto Gatha Angra é transformado em um nome próprio.[23] Angra Mainyu é o Demônio de Demônios (Vd19.1,43), que se infiltrou na criação do Bom Espírito (Yt13.77). Seu epíteto é “cheio de morte” (Y61.2; Yt3.13; 10.97; 13.71; 15,56; 17.19; 18,2; 24.43; Vd1.3; 19.1, 43, 44; 22,2; Aog.4.28.).  (...) Ele é o pior mentiroso (Yt3.13). Ele é um tirano (Vd19.3), (...) e do conhecimento do mal (Aog.4), e de malignidade (Yt17.19; Vd11.10; 19,1,5,9,12,44), bem como inveteradamente perverso (Y27.1; Yt10.118; 13.71,78). Ele é o fazedor de obras más (Yt19.97).[24] (Grifo nosso)
Em segundo lugar, Eliade esclarecerá que “a teologia de Zaratustra não é ‘dualista’ no sentido estrito do termo, uma vez que Aúra-Masda não é confrontado com um ‘antideus’”.[25] Seria mais aceitável, portanto, a ideia de um Deus criador de todas as coisas, mas, que, se exime da responsabilidade do Mal. Na sequência, Eliade dirá que: “... o Bem e o Mal, o santo e o demônio destruidor procedem de Aúra-Masda, mas como Angra Mainyu escolheu livremente o seu modo de ser e a sua vocação maléfica, o Senhor Sábio não pode ser considerado responsável pelo aparecimento do mal.”[26]
Observamos, portanto, que na tradição persa a construção teológica do “fazedor do mal”, vem de: a) uma futura “personificação” do mal e; b) pela simples escolha de se querer fazer o mal.
4        DEUS É BOM, SATAN É MAU
Os judaítas estavam mesmo dispostos à compreensão de uma teologia reformulada. Um breve exemplo está na revisão do texto de 2Sm 24.1: “A ira de YHWH se acendeu contra Israel e incitou David contra eles: ‘Vai’, disse ele, ‘e faze o recenseamento de Israel e de Judá’” (Grifo nosso). Os líderes atualizam a teologia da história de Israel: “Permaneceu Satan contra Israel e instigou a David para enumerar a Israel” (1Cr 21.1; grifo nosso).
Em três lugares na Bíblia aparece o nome Satan: Jó 1-2; Zc 3.1 e 1Cr 21.1. Apenas no último texto, Satan é empregado sem artigo, como nome próprio.[27] “Para o cronista, o próprio Deus não pode mais exercer essa função negativa; ela precisa ser deslocada para uma figura fora de Deus".[28]
A revisão da OHCr[29], responsável pelo texto acima, nos revela não somente uma mudança na leitura sobre o rei Davi (que passa a ser um fiel seguidor de YHWH)[30]; ela transparece a mudança de vetor teológico (de valor cúltico/litúrgico) quanto a questão da personificação do mal em Satan. Este aparece como alguém que possui instrumentalidade independente.
CONCLUSÃO
Tentamos aqui apontar, ainda que de maneira iniciante, a transformação na teologia judaica pós-exílio no que tange à atribuição do “bem” e do “mal” a Iahweh e a Satan – respectivamente – dada no contato, sobretudo, com a religião persa.
Os textos utilizados, como a releitura da OHCr, ainda são possibilidades para futuras pesquisas mais bem detalhadas. Mas o que vimos até aqui não pode ser descartado, mediante a importância da religião de Zaratustra como aquela que influenciou a maior parte da fé judaica e, consequentemente, cristã. Isto posto, é-nos possível verificar como as catástrofes da vida (como a destruição da cidade santa e o exílio) têm o poder de transformar até mesmo a fé de um povo escolhido. A fé é certeza até que o bem e o mal sejam resolvidos e/ou bem definidos dentro de nós para que assim, sejam definidos nos céus.

REFERÊNCIAS
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[2] DHALLA, Maneckji Nusservanji. History of Zoroastrianism. New York, Oxford University Press, London Toronto, 1938, p. 52.
[3] Cf. FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. Trad. Josué Xavier. Santo André: Academia Cristã/Paulus, 2012, p. 33.
[4] Cf. ACKROYD, Peter R. Israel under Babylon and Persia. Oxford University Press, Walton Street, Oxford ox2 6dp, 1970, p. 171.
[5] DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. Vol. 2. Da época da divisão do reino até Alexandre Magno. 4ªEd. São Leopoldo-RS: Ed. Sinodal, 1997, p. 465. (DONNER apresenta como referência a obra de A.A. AKARYA: The Chronology of the Return from the Babylonian Captivity. Tarbiz, 37:329-337, 1967/8.)
O doutor em Ciências da Religião, prof. Daniel SOTELO, reafirma essa problemática cronológica em: O Pós-Exílio, Coleção História de Israel, vol. 3. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pp. 11-14.
Não nos caberá, nesta comunicação, discutir o assunto da cronologia, embora seja relevante registrá-lo como ponto introdutório para a construção desta comunicação.
[6] Cf. SEGANFREDO, Carmen; FRANCHINI, A.S. As melhores histórias da Mitologia Egípcia. Porto Alegre-RS: L&PM, 2012, pp. 53-68.
[7] CORREA, Maria Isabelle Palma Gomes. Mitos Cosmogônicos: Suméria e Babilônia, p. 200. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/isabelle/Sum_indx.html. Acesso em 10 de junho de 2014.
[8] SANDARS, N.K. A Epopeia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[9] FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. Trad. Josué Xavier. Santo André: Academia Cristã/Paulus, 2012, pp. 52-67.
[10] Marduk (ou Marduque) é chamado de Merodaque pelos hebreus (Is. 39.1; Jr. 50.2; 2Rs 25.27).
[11] Enuma Elish – o épico da criação. Trad. L.W. King. Londres, 1902. Tábua 4. Disponível no sítio eletrônico: http://www.setecove.com.br/upload/apostila/ehji4l4e2icENUMA%20ELISH%20em%20Portugu%C3%AAs.pdf. Acesso em 10 de junho de 2014.
[12] KLEIN, Ralph W. Israel no Exílio – uma interpretação teológica. Trad. Edwino Royer. Santo André-SP: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2012, pp. 31-32.
[13] Idem, nota 5, p. 32.
[14] “Por que se queixa o homem, que ele seja homem apesar de seus pecados?... Nós pecamos, fomos rebeldes e tu não nos perdoaste.”
[15] SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperança no Exílio. História e teologia do povo de Deus no século VI a.C. 3ª ed. São Leopoldo: Oikos, 2009, pp. 30-31.
[16] RUSSEL, J.B. The Devil. Ithaca: Cornell University Press, 1977, p. 174.
Caberia melhor investigação da figura do mal nos demais livros judaicos: embora a figura do Adversário esteja presente no Talmud e no Midrash, nenhum destes fazem menção de Satan como anjo caído. Até mesmo o Zohar (comentários místicos sobre a Torah; escritos, segundo a tradição ortodoxa, no século II d.e.C.), o “lado negro” é apresentado como um aspecto de Deus que no mundo é visto como resultado do pecado humano. O Zohar não ensina o dualismo, mas ensina que a luta entre o bem e o mal ocorre dentro do ser divino.
[17] יוֹצֵ֥ר אוֹר֙ וּבוֹרֵ֣א ח֕שֶׁךּ עֺשֶׂה שׇׁל֭וֹם וּב֣וֹרֵא רׇע֑ אֲנׅי יְהוָה עֺשֺה כׇל־אֲלֶה
[18]  VERMES, Geza. Jesus, o Judeu. London: SCM, 1993, p. 61.
[19] DHALLA, 1938, pp. 30-35; 155-156.
[20] Idem, pp. 259-261.
[21] Nesta esteira de pensamento, um deus faz o bem, enquanto outro, o mal.
[22] DHALLA, 1938, p. 257.
[23] Da mesma maneira que Satan.
[24] Idem, p. 259.
[25] ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Tomo I: Da Idade das Pedras aos Mistérios de Elêusis. Vol. 2: Dos Vedas a Dionísio. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p. 148.
[26] Idem.
[27] Bíblia – Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 1472, n. t.
וַיַּֽעֲמֺ֥ר שָֹטָ֭ן עַל־יִשְֺרָאֵ֑ל וַיַּסֶת֙ אֶת־דָּוִ֔יד לׅמְנ֭וֹת אֶת־יִשׂרָאֵֽל
[28] BAUER - Dicionário Bíblico-Teológico.  São Paulo: Ed. Loyola, 2000, p. 400.
[29] Obra Historiográfica Cronista.
[30] SOTELO, Daniel M. A Torah e a Obra Historiográfica Deuteronomista: as revisões sob a influência persa no contexto sócio-histórico do pós-exílio. 2010. 226 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Departamento de Filosofia e Teologia. 2010, p. 74.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

– O insigne nós e o outro demonizado – [A justaposição utilizada como salvação do outro ou como permanência do conteúdo religioso]


A cosmovisão de um determinado povo ou segmento religioso se dá através de percepção identitária. A pergunta “quem nós somos”, por vezes, é respondida quando se identifica o que o outro não é. Essa identificação é legítima, porém, parcial, visto que o julgamento subjetivo mostra-se tomado por um conceito pré-estabelecido, de axioma de gerações, de cosmogonias e tradições escritas e/ou orais, sem interrupções de informações e críticas para uma análise de um novo jogo sobre o outro.
Quanto mais se pontua as diferenças, mais distante da “verdadeira proposta” para o humano se torna o outro – ainda que neste contexto (pós)moderno. Há pluralidade, mas não há contextura. Há tolerância porque não se pode impedir, mas não há respeito em considerar que os mundos dos outros também habitam no mesmo mundo do insigne nós.
Decerto que nem todos os povos e religiões possuem o conceito do demônio que o cristianismo popularizou mediante influência persa sobre o judaísmo tardio. A presença do diabo na mitologia africana só foi possível pela projeção católica. Segundo Câmara Cascudo, “não há mesmo um vocábulo próprio para designá-lo a não ser personalizando uma de suas atribuições. Psicologicamente, uma projeção cristã de Satanás”.[2]
Contudo, demônio e demonização são questões que diferem, embora seus juízos comunguem. Pois já que o demônio - na teologia cristã - é aquele cuja capacidade se deve (na possessão) a modificar a identidade de alguém, forçando uma alteração de atitudes, demonização, por sua vez, é declarar que o outro possui ou está possuído por uma identidade que não a “nossa”.
Este artigo, portanto, é a honesta tentativa de refletir sobre parte do fundamentalismo no campo religioso brasileiro salientando alguns eventos históricos sobre identificação do sagrado alheio, justaposição (como ferramenta de missão ou de permanência de conteúdo religioso) e – consequentemente - demonização. Concluiremos com o momento do cristianismo em sua versão neopentecostal (representada pela IURD) e como se dá a relação com as religiões afro-brasileiras (representada pela Umbanda).
1.    Eventos de Justaposição
Bittencourt relata em sua obra Matriz Religiosa Brasileira que os indicadores científicos mais confiáveis apontam que o território brasileiro possui ocupação humana há pelo menos 5 mil anos. Já a missão arqueológica franco-brasileira, chefiada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, na década de 70, afirmou que o fóssil mais antigo das Américas tem entre 11 e 16 mil anos e foi encontrado em Belo Horizonte. Trata-se de um crânio de uma mulher negra que fora batizada com o nome Luzia pelo biólogo Walter Alves Neves. Como a história desconhece um povo que seja ausente de religiosidade, concluímos que o campo religioso no Brasil é de tempos ainda mais remotos.
1.1.        Índios
Alguns historiadores calculam que em 1500, existiam cerca de 3 a 4 milhões de índios no Brasil.[3] Segundo informações da FUNAI[4], só na bacia amazônica existiam 5,6 milhões de índios. Independentemente dos desencontros estatísticos, sabe-se que com a chegada dos europeus, a religiosidade dos índios fora questionada e demonizada. O cosmógrafo franciscano André Thevet, de volta da experiência na “França Antártica”, assim a descrevia em 1558: “… esta região era e ainda é habitada por estranhíssimos povos selvagens sem fé, lei, religião e nem civilização alguma, vivendo antes como animais irracionais…” Pero Magalhães de Gândavo, em 1570, e Gabriel Soares de Souza, em 1587, escreviam que “os índios não têm nem fé, nem lei, nem rei”. Também para o jesuíta Cardim, “este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de cousa do Céu… e, portanto, não tem adoração nenhuma, nem cerimônias, ou culto divino”.[5] Ou seja, o mundo desconhecido passa, impreterivelmente, pelo crivo de quem diz ter encontrado a verdade e, agora, faz desta, objeto de posse e missão.
Nesse processo de cristianização, Mahyra, por exemplo, o ser sobrenatural dos tupis (cuja data de sua referência é justamente do séc. XVI), fora utilizado pelos jesuítas na pessoa de Nóbrega, inicialmente para equiparação à crença cristã e, após isso, catequese. Não obstante, outras entidades sobrenaturais foram demonizadas. Segundo palavras de Nóbrega:
Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhece a Deus, somente aos trovões chamam de Tupane; que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupane.[6] (LARAIA, 2005, p.11)
O antropólogo brasileiro Roque Laraia comenta – certeiramente – que
De um modo geral, Tupã poderia ter sido melhor definido como um demônio, temido por controlar o raio e o trovão e, assim, consequentemente, a morte e a destruição. Dessa maneira os sentimentos indígenas para com essa entidade são mais de medo do que veneração.[7] (Grifo nosso)
Concluímos nesta parte que o objetivo dos colonizadores não era exceptuar as divindades, visto que eram tidas como “nada”. A tarefa era de: 1º) etiquetá-las com nova identidade; 2º) mudança rígida de conteúdo e; 3º) conversão dos símbolos sagrados e de seus rituais cúlticos a fim de que os outros pudessem ter a mesma experiência com a verdade do insigne nós.
1.2.        Negros
1.2.1.   Negros na África
Além dos índios, estima-se que no período colonial, cerca de 3,6 milhões de negros entraram no Brasil para serem vendidos como escravos.[8] Nesse tempo, chegaram ao país os primeiros africanos de origem iorubá (hoje ficam na Nigéria, Benin e Togo).
Pierre Verger diz que os primeiros navegadores portugueses (séc. XV), batizaram as divindades africanas com o nome de “feitiço” – palavra portuguesa que significa algo como “formado”, “coisa feita”.[9] E que
Do século XVII em diante, os traficantes de escravos informavam sobre as religiões que nos interessam; mas, como eles estavam mais preocupados em “fazer um tráfico lucrativo com negros, dentes de elefantes e outras mercadorias” (Snelgrave) falavam dessas religiões da maneira mais desdenhosa. Para aquela gente, elas eram: “Uma massa confusa de superstições ridículas” (d'Elbée); “Eu não creio que haja na terra um povo mais supersticioso” (Bosman); “Sua religião é tão ridícula e tão confusa” (Nyendael); “Supersticiosa, ridícula e sem fundamento” (Des Marchais); “Um mundo de costumes supersticiosos” (Snelgrave); “Uma espécie de idolatria de um incrível absurdo” (Pruneau de Pomegorge); “Uma embrulhada de superstições absurdas” (Dalzel).[10]

Na visão de Richard Lemon Lander, explorador britânico, sobre os africanos: “O pior tipo de paganismo, o culto de demônios e outras práticas abomináveis”. (Grifo nosso) Para alguns missionários protestantes, a mesma atitude de desprezo é expressa numa comparação das religiões indígenas com o catolicismo. Assim é que o Rev. Townsend, censurando a religião do povo de Abeokuta, diz: “Os orixás são suas imagens e crucifixos. Não pode haver muita diferença entre papismo e paganismo”.[11]
Olorum é considerado pelos iorubás como o Deus supremo, onisciente, possuindo um poder absoluto, justo, bom, benévolo e onipresente, e que sua posição é única entre os objetos da crença deles e isto sem a influência do cristianismo. Leo Frobenius possui uma opinião oposta: “Para prepará-los para admitir o Deus cristão, os missionários dizem logo: ‘Nosso Deus é O mesmo que o seu Olorum’”.[12] (Grifo nosso)
1.2.2.   Negros no Brasil
Bittencourt relata que os iorubás, quando chegaram ao Brasil, tinham por religião o candomblé, mas por estarem numa região proeminentemente católica, começaram a associar suas divindades com os santos católicos para exercerem sua fé disfarçadamente. Os senhores tinham como controlar tudo, exceto o pensamento dos escravos. É Bittencourt quem chamará esse jogo de orixás com santos católicos de justaposição:
Os africanos trazidos para o Brasil percebiam separadamente as tradições religiosas de origem e as cristãs. A tendência inicial foi simplesmente justapor os elementos dessas religiões, sem vínculo de conteúdo entre eles.[13] (Grifo nosso)
E continua
Já os descendentes dos escravos no Brasil, não conheceram essa situação de duas mundividências religiosas diferenciadas; assim, o sincretismo serviu também como um mecanismo para se preencherem lacunas. No caso do sincretismo afro-brasileiro, a lógica imperante não foi a da separação dos elementos, mas sim a que une esses elementos. Pode-se dizer, pois, que não foi a pergunta pela origem (de onde vem?), mas sim a pergunta pelo objetivo (para que serve?) que mais influenciou o processo de sincretismo.[14]
Durante a segunda metade do século XIX, onde muitos retornaram para a África, constituíram uma sociedade à parte, basicamente endogâmica, e uma identidade social assimilada à dos primeiros brasileiros. Segundo Milton Guran:

Esta identidade se reproduzia também por meio da religião – eles eram basicamente católicos, apesar da mistura com os cultos vodus – e da instrução escolar. Eles criaram escolas onde todas as crianças, meninos e meninas, aprendiam a ler e escrever em português (...) enquanto que os súditos de Abomé eram proibidos de frequentar as salas.[15]

Esse fato é o resultado de um enxerto dogmático e cultural de séculos. Os agudás (ajuda), como são chamados os escravos que retornaram para África, inseriram modos europeus abrasileirados. Todos perderam a identidade religiosa, a cultura e os familiares. Voltaram utilizando sobrenome, com religiosidade sincrética e visão do outro a partir do novo jogo aprendido com os cristãos.
1.3.        Os umbandistas
Embora sincrética, a Umbanda, religião genuinamente brasileira, surgida nos idos de 1920 no Rio de Janeiro, combina elementos do candomblé, do catolicismo e do espiritismo kardecista (séc. XIX). A umbanda cultua os orixás com imagens diferentes, além de outros três: preto-velho, caboclo e pomba-gira. Estes não aparecem no candomblé. É certo que ainda nos dias atuais, as religiões afro-brasileiras utilizam a justaposição – o que acaba por remontar o tempo da escravidão.
A percepção de André Droogers[16] para com os “espíritos de luz” (caboclo, preto-velho e crianças) diz poder ser um grito social dentro da umbanda.
Os caboclos, espíritos de índios. A imagem do índio feita pelo romantismo do século XIX é muito parecida. Esse índio luta contra os brancos e é tido como símbolo da luta do Brasil pela independência. Não é difícil ver como os índios foram expulsos de suas terras, marginalizados e até exterminados no decorrer da história do Brasil nos últimos séculos (segundo dados do censo 2010, hoje são 817 mil índios[17]). A segunda categoria de espíritos é formada pelos pretos-velhos. São espíritos de escravos velhos. Parece representar o negro complacente, controlado pelos brancos. Neste caso também há uma tendência de deixá-los numa posição à margem da sociedade, longe do poder, da política, da prosperidade econômica, dos bairros ricos. A terceira categoria são os espíritos de crianças. As crianças, por definição, não são adultas e ficam à margem delas.[18]
Após esta brevíssima passagem por dados histórico-sociais, podemos observar que o insigne nós no Brasil (aqui representado pela IURD) permanece marchando numa cadência pré-moderna no que tange ao seu relacionamento com religiões afro-brasileiras. Veremos a seguir, que tanto o peso do discurso moderno como o laicismo nacional (1890) influenciado pelo positivismo, são interessantes para o insigne nós tão somente quando lhes interessa a ordem e o progresso do que valorizam como verdade.
2.    De poderes (da aparente insuficiência da modernidade ao poderio midiático da IURD)
O marco para as ciências (e por que não para o “desenvolvimento” do mundo?) não se deu a partir de respostas pré-estabelecidas, e sim, de perguntas. As experiências e buscas insaciáveis levaram o ser humano a esboçar novos caminhos, novas pesquisas, novas respostas e, com isso, novos questionamentos. A Modernidade concluiu que não há um só ponto de referência. Há referências. No campo religioso, Deus e o que é sagrado servem para referenciar, dar sentido. A (pós)modernidade no Ocidente liquidificou todas as respostas e colocou dentro de uma caixa aberta.
Com a chegada de outros povos, o sincretismo passou a ser um processo que se propunha a solucionar conflitos e problemas em contextos multiculturais. Obviamente que os conflitos não foram de todos apaziguados, mas certamente, em muitos casos minimizados ao reconhecimento de que a crença alheia era verdade para o alheio. E se anteriormente a busca fora por anulação e, consequentemente, demonização das referências sagradas dos povos de terras conquistadas, agora, com a Constituição de 1988, não se pode anular ou privar o exercício do culto alheio; mesmo assim, o processo de demonização não se calou, antes, tornou-se rotineiro no discurso televisivo neste país de muitos deuses ainda caricaturados pelo regime do insigne nós.
Podemos afirmar que as religiões são referência e não cultura, todavia, a cultura referencial de uma terra é influenciada pelas crenças que nela residem. Negá-las, portanto, é excluir referências de mundos balizadores da humanidade.
O Brasil, país laico desde 1890, quando da Proclamação da República (essa liberdade de pensamento que resultou diretamente da influência do Positivismo[19]) abriga um vasto número de religiões. 89% da população brasileira crê que a religião é importante[20] e que cada indivíduo possui liberdade de expressar sua crença desde que não fira os valores maiores: o do outro.
Por isso, como não se pode anular a crença alheia dizimando o que pensa diferente, legitima-se o sagrado desconhecido dando novos significados e, por fim, demonizando-os. É o mesmo jogo medieval, porém, sem forcas ou fogueiras, mas com toda a força das “ferramentas modernas” de que a religião dispõe. Veja pesquisa feita pela Folha de São Paulo[21]:

Somados todos os horários, temos 534 horas semanais em canais abertos com programas religiosos. Dessas 534, 140 horas são compradas por milhares de reais pelas igrejas evangélicas. Em 2010, só a IURD teve 32 horas semanais na TV Record, o que lhe custou cerca de 500 milhões de reais durante aquele ano.[22]
Segundo a Folha de São Paulo,
pela lei em vigor, cada emissora (concessão) só poderia vender até 25% do seu espaço para publicidade. As TVs driblam o dispositivo porque igrejas não podem ser consideradas anunciantes. Para alguns profissionais da TV, no entanto, essa prática é ilegal e a lei proíbe a venda da grade a terceiros. A Anatel ou o Ministério das Comunicações jamais se manifestaram a respeito.[23]
A IURD possui poder midiático que avilta as religiões afro-brasileiras sem que essas tenham direito à resposta. Notemos a seguinte notícia: 
Em uma decisão inédita do Ministério Público Federal, as entidades foram autorizadas a produzir um vídeo com “direito de resposta” que deveria ser exibido gratuitamente pela Rede Record no final de 2011. Mas a emissora recorreu da ação e conseguiu impedimento, ao menos por enquanto.
Logo na abertura, o telespectador é informado que trata-se de “direito de resposta concedido pela Justiça Federal ao Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), ao Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (INTECAB) e ao Ministério Público Federal, autores da ação contra o enfoque negativo e discriminatório das religiões afro-brasileiras”.
O vídeo de quase uma hora de duração, foi produzido pela TV PUC e tem a participação de diversos representantes de entidades religiosas afro-brasileiras, católicas, budistas e muçulmanas, além de profissionais de comunicação e artistas. Intitulado “Diálogo das Religiões”, é basicamente um apelo pela convivência harmônica entre as diferentes vertentes religiosas do país.[24] (Grifo nosso)
A solução não é oferecer a mesma arma para reação, mas trabalhar para conscientização de que um discurso que demoniza outrem em mídia causa desconforto atingindo diversos setores – quer sejam religiosos, acadêmicos, jurídicos.
À guisa de conclusão, verificaremos a ideia de identidade neste contexto do insigne nós e do outro demonizado.
3.    De identidade e Justaposição
Bittencourt vai dizer que
Os pentecostalismos, por seu turno, reprocessaram a religiosidade de origem matricial, apondo-lhes sinais valorativos. Em outras palavras: ao invés de rejeitar esse sistema de crenças do senso comum, discriminaram e classificaram aquilo que pertenceria ao domínio de Deus, e aquilo que se situaria na jurisdição do Diabo. A rigor, com esse procedimento, os pentecostalismos ensejam que a Matriz Religiosa Brasileira permaneça intacta. Esta seria apenas cuidadosamente realocada num novo esquema religioso.[25]
De um lado, o que é de Deus, de outro, o que é do Diabo. “Dar a César o que é de César” parece expressar dois mundos diferentes num só. Não dá para cancelar o outro. O que a IURD faz, então, é posicionar a Umbanda num mundo atrasado e perdido, desvalorizando seus ideais e funções sociais como a citação de Droogers acima.
Se observássemos a respeito dos orixás dos umbandistas num terreiro e uma cerimônia para o Deus cristão na IURD, perceberíamos que os olhos dos fiéis na igreja se dirigem mais para a terra do que para o céu. E como, então, considerar o “céu” como a residência do ser supremo? É por isso que o próprio Droogers aponta o estado entre o insigne nós e o que há de somenos: “A pergunta não é quem está contra Deus, mas contra o homem”.[26]
Nossa reflexão “termina” apontando uma resposta. Se a justaposição do candomblé foi utilizada com tanto sucesso a fim de que o conteúdo permanecesse intacto, a Umbanda poderia utilizar-se do mesmo artifício com a terceira onda pentecostal (IURD), visto que muito do que ocorre em sua liturgia (como banho do descarrego, cair no espírito, “cobrar” pelo trabalho) se assemelha aos rituais nos terreiros.






REFERÊNCIAS
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[2] CÂMARA CASCUDO, Luís da. Made in África. 4.ed. São Paulo: Global, 2002, p. 107.
[6] LARAIA, Roque de Barros. As religiões indígenas: o caso tupi-guarani. Revista USP, São Paulo, n. 67, p. 6-13, p. 11.
[7] Idem.
[8] DROOGERS, André. E a Umbanda? São Leopoldo-RS: Sinodal, 1985, p.11.
[9] VERGER, Pierre. O Deus supremo iorubá; uma revisão das fontes. Odu: University of Ife, Journal of African Studies, vol. 2, n. 03, 1966, p. 19.
[10] Idem, p. 19.
[11] Cf. Idem, p. 21.
[12] Cf. Idem, p. 28.
[13] BITTENCOURT FILHO, José. Matriz Religiosa Brasileira. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 64.
[14] BITTENCOURT, 2003, p. 64.
[15] GURAN, Milton. Da bricolagem da memória à construção da própria imagem entre os agudas do Benim. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira/ Ed. Gama Filho, 2000, p. 67.
[16] André Droogers é professor de Antropologia da Religião na Universidade Livre de Amsterdam. Entre 1980 e 1985 foi docente de Estudos da Religião na Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) em São Leopoldo, RS. De 1991 a 1995 foi Presidente da Associação de Antropologia da Holanda.
[18] Cf. DROOGERS, André. E a umbanda? São Leopoldo-RS: Ed. Sinodal, 1985.

[19] Positivismo é a doutrina que o francês Augusto Comte (1798-1857) concebeu e cujos princípios fundamentais são estes:
a) o entendimento, em filosofia,  de que o mundo funciona segundo leis naturais que lhe são inerentes, e não segundo a intervenção de seres sobrenaturais (Deus) nem de energias, espíritos ou forças igualmente sobrenaturais,
b) o entendimento, em religião, de que  há um ser supremo, superior a cada um de nós, a Humanidade, conjunto dos seres humanos de todos os tempos,
c) o entendimento, em moral,  de que o altruísmo, vale dizer, a bondade sob todas as suas formas é preferível ao egoísmo sob qualquer das suas expressões,
d) o entendimento, em política, de que o Governo deve limitar-se a atuar sobre as coisas, e jamais sobre os pensamentos, ou seja, deve ocupar-se da administração da vida material de cada coletividade, sem interferir no que se relacione com as convicções das pessoas: não deve o Estado impor  nenhuma religião, tampouco os atos de culto correspondentes; em suma, o Estado deve ser laico, neutro em matéria de religião. O seu lema é "Ordem e Progresso".
[25] BITTENCOURT, 2003, p. 44.
[26] DROOGERS, André. E a umbanda? São Leopoldo-RS: Ed. Sinodal, 1985, p. 70.