terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O discurso cosmogônico e a (re)formatação identitária judaico-cristã no novo Templo de Salomão pela Igreja Universal do Reino de Deus

“A cosmogonia é o modelo de todas as construções.
Construir uma cidade, uma casa, é imitar mais uma vez e,
em certo sentido, repetir a criação do mundo.”                                                                                                      (ELIADE, 2010, p. 305)

A arquitetura sacra não faz mais portanto do que retomar e desenvolver o simbolismo cosmológico já presente na estrutura das habitações primitivas. A habitação humana, por sua vez, fora precedida cronologicamente pelo “lugar santo” provisório, pelo espaço provisoriamente consagrado e cosmizado (...). Isso é o mesmo que dizer que todos os símbolos e rituais concernentes aos templos, às cidades e às casas derivam, em última instância, da experiência primária do espaço sagrado.
(ELIADE, 2001, p. 55)

INTRODUÇÃO
O Novo Templo de Salomão, situado na região do Brás em São Paulo[2], construído durante quatro anos e inaugurado oficialmente pela IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) no dia 31 de julho de 2014, registrou a presença de aproximadamente 10 mil pessoas, dentre as quais, autoridades políticas e fiéis. Esse interesse da massa religiosa não é apenas pela suntuosidade do Templo; trata-se, sobretudo, de uma experiência incomum, de caráter supranatural, uma cosmogonia, “um desejo de viver num Cosmos puro e santo, tal como era no começo, quando saiu das mãos do Criador” (ELIADE, 2001, p. 61)[3]. Neste caso, um espaço cosmizado que representa a Casa de Deus no discurso de fé.
O trabalho de história das religiões pela esteira fenomenológica de Mircea Eliade constrói para nós a plataforma metodológica ideal, pois situa o ser humano religioso num universo paralelo através da relação com o sagrado em um espaço sagrado, tendo neste arquétipo do projeto divino suas mais profundas experiências mediante a hierofania, levando-o a viajar para um tempo puro que sugestiona o modelo (ethos) religioso.
1        COSMOGONIA EM ELIADE
Na obra O Sagrado e o Profano, Eliade afirma que a “profunda nostalgia do homem religioso é habitar um ‘mundo divino’, ter uma casa semelhante à ‘casa dos deuses’, tal qual foi representada mais tarde nos templos e santuários” (Ibid, p. 61). A habitação nesse lar/Templo sugere um local inspirado no local do estado puro, onde haveria de estar a essência do conteúdo sagrado.
Duas atividades são conceituadas para possibilitar o recomeço mediante o esgotamento (Caos) no mundo: a Cosmogonia, que é um ato simbólico de fundação através de qualquer construção e que reproduz a Criação do Mundo e; Bauopfer, que está para além de um ato de fundação, e devido sua complexidade, apenas esboçado na obra supracitada como forma de manter o mito através de sacrifícios sangrentos ou simbólicos em proveito de uma construção (Ibid, p. 53).
Quanto à cosmogonia, “toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova vida” (Ibid, p. 54). Esse incipit vita nova é gestado através da construção de uma morada, templo, basílica, catedral, e que se situa simbolicamente no Axis Mundi, ou seja, no Umbigo ou Centro do Mundo. Como reafirmou o professor em Antigo Testamento, Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro, em sua tese de doutoramento: “Por conta desse contágio do ‘lugar’ pelo sagrado tomado como manifesto na experiência hierofânica, esse preciso lugar revela-se como ponto fixo, absoluto – um centro” (RIBEIRO, 2008, pp. 37,38).
Em Mito do Eterno Retorno, considerada pelo próprio Eliade sua obra mais significativa (1992, p. 10), o autor formula o simbolismo arquitetônico do Centro do seguinte modo:
1.              A montanha sagrada — onde o céu e a Terra se encontram — está localizada bem no Centro do mundo.
2.              Cada templo e palácio — e, por extensão, toda cidade sagrada ou residência real — é considerado como uma montanha sagrada, sendo visto, portanto, como um Centro.
3.              Em sua condição de axis mundi, considera-se a cidade ou templo sagrado como o ponto de encontro entre o céu, a terra e o inferno. (ELIADE, 1992, p. 19)

Ora, sendo assim, os templos religiosos não estariam inseridos neste esquema? De certo modo sim, todavia, o que nos interessa é apontar para uma (re)construção de um espaço sagrado (neste caso, o Templo de Salomão – IURD) cuja finalidade é de revalidar ritos, símbolos e comportamentos baseados em estruturas sócio-político-religiosas datadas a partir do séc. XI a.e.c. (do primeiro Templo de Salomão), além de registrar testemunhos de fiéis que afirmam experienciar um tempo bíblico, uma real reaproximação de um estado puro.
O francês Marcel Mauss, um expoente sociólogo, antropólogo e especialista em história das religiões, dissera que “as coisas religiosas que se passam no tempo são legítima e logicamente consideradas como se se passassem na eternidade” (apud ELIADE, 2010, p. 320). Eliade, após citar a frase, comenta em seu livro Tratado de História das Religiões, que “... cada uma dessas ‘coisas religiosas’ repete sem fim o arquétipo, quer dizer, repete o que teve lugar no ‘começo’, no momento em que, ao se revelarem, um rito ou um gesto religioso se manifestaram, ao mesmo tempo na história” (Ibid). Ou seja, os movimentos religiosos fabricados durante a história desconsideram a cronologia do tempo perpassando com seus efeitos e magias, independentemente da região em que fora construído o lugar sagrado, pois é a partir deste que o centro do mundo se faz.
Mediante tais informações, a pergunta que formulamos se baseia em como o novo Templo de Salomão é estruturado no modelo cosmogônico forjando nos fiéis da IURD comportamentos inspirados no Templo antigo, que já era, na tese de Ribeiro, uma cosmogonia e marco da reorganização político-social de Judá sob a Pérsia.

2        O ARQUÉTIPO CELESTIAL PARA A CONSTRUÇÃO DO TEMPLO
No segundo capítulo da obra O Dossel Sagrado, Peter Ludwig Berger monta um arcabouço sobre a Religião e Manutenção do Mundo. Para o sociólogo e teólogo austríaco, existe um termo, que fora tirado de Weber – embora utilizado em sentido mais amplo em sua obra – “para escorar o oscilante edifício da ordem social. É o processo da legitimação” (BERGER, 1985, p. 42). Conferirá ênfase à temática ao dizer que
a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação. Toda legitimação mantém a realidade socialmente definida. A religião legitima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado realissimum, que por definição está além das contingências dos sentidos humanos e da atividade humana. (Idem, p. 45; grifo nosso)
A religião legitima as instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico. (Idem, p. 46)
A dificuldade que o ser humano não-religioso tem para viver em um mundo vazio de pressupostos e legitimações religiosas (cf. RIBEIRO, 2008, p. 38,39), faz com que haja urgência na representação de um espaço de ideias (noológicas) a fim de situar não apenas as instituições mas também o sujeito na realidade sagrada. Para que haja conexão entre a construção de um espaço sagrado e os fiéis, deve conter no discurso sua legitimação que é dada pelo estado puro. Por exemplo:
Quando Davi dá a seu filho Salomão o projeto dos utensílios, afiança-lhe que “tudo aquilo... se encontra exposto num escrito da mão do Eterno, que me facultou o entendimento disso” (I, Crônicas, XXVIII, 19). Ele viu, pois, o modelo celeste criado por Jeová desde o começo dos tempos. É o que Salomão proclama: “Ordenaste-me que construísse o Templo em teu santíssimo Nome e um altar na cidade onde habitas, segundo o modelo da tenda santa que tu havias preparado desde o princípio” (Sabedoria, 9:8). (ELIADE, 2001, pp. 56,57)[4]
Para Ribeiro, essa construção do espaço sagrado tendo por modelo um projeto celestial carrega em si dois importantes significados: a) a irrupção do “absoluto real” na “relatividade profana” da vida, oferecendo referências e orientação na vida comum; b) a reprodução eficiente e simpática dos atos criativos da(s) divindade(s), evocados como encantamento mítico da obra humana, sem o qual ela não logra transignificar a relatividade cotidiana em absoluto sagrado (cf. RIBEIRO, 2008, p. 40).
Há, portanto, a mesma lógica sobre um modelo sagrado/celestial para a reconstrução do Templo de Salomão (IURD). Segundo o <blog.otemplodesalomao.com>[5], responde que
A nossa fonte de inspiração para a construção do Templo não está na cultura de um povo, mas nos elementos que compõem e se originam na Palavra de Deus, a Bíblia Sagrada. Então, não utilizamos símbolos da cultura judaica em si, mas símbolos bíblicos que nos remetem a reviver a fé e o temor dos grandes homens de Deus do passado, que creram e obedeceram ao Deus de Israel, o Deus da Bíblia.[6] (Grifo nosso)

Neste caso, os elementos sumários disponíveis na Bíblia Sagrada servem como modelo único para a construção do Templo, bem como estruturar as experiências de fé no crente do século XXI tal como em época dos que viveram no contexto do Templo Bíblico.
3        O DISCURSO COSMOGÔNICO
Notemos o que registra a página eletrônica acerca do Templo em questão: “tem um significado profundo porque todos os que ali entrarem, independentemente de sua crença, estarão voltados para os tempos bíblicos[7] (grifo nosso). E mais:
No Templo de Salomão o povo procurava ter contato com Deus. Era neste lugar, assim como no antigo Tabernáculo, que todos focalizavam a atenção para o Senhor, por isso mesmo, inspirava respeito e reverência ao Altíssimo. O Templo de Salomão, em São Paulo, foi erguido para restaurar não apenas esse contato direto com Deus, sem intermediários, mas também para resgatar o respeito para com a Santidade e a Casa de Deus, um Lugar Sagrado em que toda a reverência é prestada a Ele, que nos recebe em Sua própria morada.[8] (Grifo nosso)

Para o Bispo Edir Macedo, o limiar seria levado em consideração ao apontar regras, como: “quando você adentrar no Santuário do Altíssimo, não vá vestido apenas de temor, mas de reverência, respeito e consideração para com Ele”[9] (grifo nosso). E a reatualização dos próprios sentimentos bíblicos seria um foco importante a partir do cruzamento com o limiar ao afirmar que “o Templo de Salomão (...) tem um sentido espiritual muito forte, uma vez que resgatará a Santidade, o Respeito, o Temor, a Reverência e a Consideração para com o Senhor Deus”[10] (grifo nosso).
Em uma reunião na cidade de São Paulo, Macedo comentou:
Nós encomendamos o mesmo modelo de pedras de Jerusalém que foram usadas por Salomão, pois vamos revestir as paredes do templo com elas. Nós queremos que as pessoas tenham um lugar bonito para buscar a Deus e também a oportunidade de tocar nessas pedras e fazer orações nelas.[11]

O jornalista Eduardo Reina (O Estado de São Paulo) publicou trechos divulgados no blog (de Edir Macedo) – ainda no início das obras – da participação do arquiteto. O arquiteto afirmou sobre o novo empreendimento “arrojado” e que empregaria “tecnologia de ponta para que, quando as pessoas entrarem no local, viagem pelo tempo e sintam-se como se estivessem no primeiro templo construído por Salomão”.[12] Reina encerra sua matéria citando Macedo: “o local não será de ouro, mas as riquezas de detalhes empregados em cada parte do templo serão muito parecidas com os do antigo santuário”.[13]
A página eletrônica <otemplodesalomao.com> abre outra porta para uma possível e nova hipótese de discurso cosmogônico – além da construção física do espaço sagrado – ao registrar que “Em Sua Casa, também chamada de Casa de Sacrifício, todo o povo terá a oportunidade de render ao Eterno a própria vida como sacrifício santo e agradável a Deus”[14] (grifo nosso).
A “Casa de Sacrifício” nos remeteria à expressão alemã Bauopfer(?), utilizada por Eliade. Aqui, o uso do referido termo torna-se útil não como sacrifício de animais, e sim, como um sacrifício simbólico para a manutenção do mito. A entrega de si é uma simbologia para oferta financeira através da confiança posta no discurso religioso alicerçado quase sempre a uma campanha de fé que reporta a uma personagem ou local bíblicos.[15] Como a entrega de si é a entrega da oferta financeira, a mesma deve ser encarada como um sacrifício.[16]
Portanto, as duas atividades apresentadas no início desta comunicação (cosmogonia e Bauopfer) poderiam estar ligadas ao Templo de Salomão (IURD). O que nos sugere pensar em uma pesquisa mais arrojada, visto que o material bibliográfico sobre o novo Templo ainda nos é diminuto.
CONCLUSÃO
O novo Templo de Salomão viabiliza oportunidades claras para um recomeço a partir dele. Um marco que possibilitará, sobretudo, uma pesquisa mais aprofundada no campo das ciências sociais com a contribuição do funcionalismo de Bronislaw Malinowski, E.E. Evans-Pritchard e A.R. Radcliffe-Brown, cuja investigação será sobre o conjunto de normas e regras estabelecidas coletivamente e que orienta a vida de indivíduos e grupos em sociedade. Na intenção de pesquisar o novo Templo de Salomão (IURD), teremos a tarefa de analisar, portanto, as influências dessa organização em torno do espaço sacralizado e de suas atividades sagradas em que o discurso cosmogônico, bem como os rituais e sacrifícios simbólicos sugerem no comportamento da vida em sociedade.


 REFERÊNCIAS
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado – elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
__________. Perspectivas Sociológicas – uma visão humanística. 23ªed. Petrópolis: Vozes, 2001.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
CORREA, Maria Isabelle Palma Gomes. Mitos Cosmogônicos: Suméria e Babilônia. Disponível no sítio eletrônico:
http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/isabelle/Sum_indx.html. Acesso em: 10 junho de 2014.
CRÜSEMANN, Frank. A Torá - Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento. Trad. Haroldo Reimer. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 2002.
ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. Trad. José Antonio Ceschin. São Paulo: Ed. Marcuryo, 1992.
__________. O Sagrado e o Profano – A essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
__________. Tratado de História das Religiões. 4ªEd. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004.

Sítios Eletrônicos:
http://blog.otemplodesalomao.com/


http://www.universal.org/noticias.com/

https://universouniversal.wordpress.com/

http://sao-paulo.estadao.com.br/



[2][2] Construído com “Alvará de reforma” concedido pela Prefeitura da cidade, segundo investigações do Ministério Público após contestações do vereador Adilson Amadeu (PTB). (Aguardando documento oficial dos órgãos citados)
[3] Em I Cr. 28,19, o templo tem um modelo celestial, um plano que sai como das mãos do próprio Deus (Cf. nota 4).
[4] Eliade registra basicamente o mesmo texto em O Mito do Eterno Retorno (1992, p. 15): “E quando Davi apresenta a seu filho Salomão o plano para os edifícios do templo, para o tabernáculo e para todos os seus utensílios, garante-lhe que "tudo isso... Yahveh tinha escrito com sua própria mão para tornar compreensível todo o trabalho cujo modelo ele dava" (I Crônicas 28,19). Portanto, ele tinha visto o modelo celestial”.
A reprodução de um modelo celestial é ainda endossada por Eliade ao citar o Apocalipse de Baruc:
“A construção que atualmente se encontra no meio de vós não é aquela que foi revelada por Mim, a que estava pronta desde o tempo em que me decidi criar o Paraíso, e que mostrei a Adão antes do seu pecado”. (Apocalipse de Baruc, II, 4, 3-7, apud ELIADE, 2001, p. 57)
[5] Página eletrônica que traz informações sobre reuniões no Templo, além de tentar dirimir dúvidas sobre o motivo da construção, dos rituais e de seus símbolos, etc.
[9] http://www.otemplodesalomao.com/#/entrada
[12] Em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,replica-do-templo-de-salomao-deve-custar-r-200-milhoes-imp-,584551>. Acesso em 12 dezembro de 2014.
[13] Idem.
[14] Em: <http://www.otemplodesalomao.com/#/otemplo>. Acesso em 12 dezembro de 2014.
Segundo a perspectiva elidiana, “(...) a estrutura cosmológica do Templo permite uma nova valorização religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o Templo ressantifica continuamente o Mundo, uma vez que o representa e o contém ao mesmo tempo. Definitivamente, é graças ao Templo que o Mundo é ressantificado na sua totalidade. Seja qual for seu grau de impureza, o Mundo é continuamente purificado pela santidade dos santuários” (ELIADE, 2001, p. 56).
[15] Como por exemplo: A Fogueira Santa de Israel e O Monte Carmelo. Em: <http://www.universal.org/noticias/2014/11/21/a-fogueira-santa-de-israel-e-o-monte-carmelo-31470.html>. Acesso em 31 dezembro de 2014.
[16] No caso da Campanha da Fogueira Santa, o sítio eletrônico (vide nota 14) oferece as opções: “Você também pode fazer seu sacrifício pela internet, no endereço eletrônico doação.universal.org” (Grifo nosso). 

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